Friday, October 08, 2004

A sombra na janela

Queria poder entender o pacto cinza de silêncio que fiz há muito tempo já. Tantos copos na pia, restos de frutas esquecidas em taças longas. Longos dedos, finas ironias de bocas rasgadas, dor que emudece e ilumina novos caminhos, mudos os criados na casa solitária do meu arrependimento.
Somos assim, inquietos e imóveis, represados em medo e soluções pacíficas de meias verdades. Agonia lenta de um dia de verão acabando por trás daquele morro.
Siouxsie Sioux cantando Belladona no cd player. Tímidas tentativas de viver uma vida que não é minha, mas em suma o sumo dos minutos escoando pelos poros revela coisas novas, ecos vindos de longe. Ecos nem sempre vem de longe, mas esse vem...
Um poro é uma coisa muito pequena; muitas portas são pequenas e estreitas.
Mas nada é mais assombroso para o menino que mora aqui dentro das costelas, espremido entre outros órgãos, por vezes estúpidos e inúteis, coração bobo e vacilante, do que a sombra na janela.
Ele olha a sombra na janela, pensa estar errado, uma sombra, não o seu reflexo distorcido pelas gotas da chuva.
O que seria das gotas de chuva se não existissem as janelas de vidro?
Memórias de fatos e noites escrotas vividas em tempos sujos e ásperos. Carícias frias de tempos já há muito esquecidos, memória de pele e arrepio de frio.
Cala cala cala cala essa besta, fera, tormenta, raiva; cega a mulher no pátio da minha elipse cruel, limite claro no chão dos meus caminhos. A mulher sentada no pátio, descasca a maçã, outras maçãs no cesto esperam ser descascadas. A mulher é cega, como o homem no conto de Clarice, suas mãos ágeis percebem cada saliência na casca vermelha, ela descasca e corta cada maçã em quatro, e as despeja em um balde azul. Às vezes ela se levanta com dificuldade e vem até a janela e me olha. Seu nome não é nome, e sua face é distorcida e muda.
Vem, quebra esse vidro, abre essa janela, espanta essa sombra daí. Me puxa pra fora desse oco seco e mal cheiroso, me mostra a estrada onde as margaridas nascem em meio ao pó que levanta. Vem o cavalo a galope, seu cavalheiro me fita com seus olhos profundos, passa e vai embora, quer uma margarida?
A sombra na janela me enlouquece, diz o menino, ele pensa em coisas doces, de tempos mais antigos tenta espantar em vão essa moldura de frio, esse nanquim esboçado em uma crua tarde.
Muitos caminhos levam a mais caminhos, onde estão as pedras ao longo do caminho, para que se possa sentar e repousar um pouco? Olhar para as árvores e aspirar o perfume intenso das escolhas?
Água mineral com ou sem gás? Pergunta a moça sorridente. Sem gás os balões coloridos dessa manhã de domingo não vão a lugar nenhum.
Aquece as cordas vocais, exercita a respiração e grita por ajuda. No vasto deserto das falências cotidianas senta-se a velha cega, a sombra muda. Eu caminho até ela, afasto os galhos das árvores secas com as mãos de dedos finos e longos, mil pianos esperam ser tocados, sinfonias inteiras de compositores mortos.
Ela me estende a mão e me convida a sentar no chão gretado, veios de rios há muito esquecidos, leitos de desejo onde muitas vezes me deitei, orgasmo cúmplice de sussurros agudos de entrega desmedida.
Você não cabe mais em si mesmo, diz ela, sábia e indiferente aos meus pedidos de trégua.
Devo renascer mais forte, mais inteiro, mas cru e mais sábio de loucuras tramadas por novas rotas, rumo ao norte do meu corpo, ao centro exato e vertical do meu eixo.
Você deve morrer essas mortes doloridas, chorar essas lágrimas trancadas em caixas de veludo antigo, expelir essas larvas, diz a velha.
O sol queima os meus cabelos, o vento resseca os meus lábios, e, lentamente eu sufoco misérias mortas nas unhas. Pouco a pouco eu me entrego à inevitável escolha de te deixar para trás, para sempre e mais muito mais.
Eu choro e meus sons ecoam na rua. Calma, diz o grande mensageiro de uma estrela que nasce ao lado da lua.
Eu escolhi renascer, mais uma vez, e, dessa vez sob signos, ícones, totalidades diferentes.
Você, tigre pediu calma e me beijou, e me lambeu, e me protegeu.
À sua sombra calma eu cresço e espero o dia em que voltarei a andar, e nesse dia nossas sombras irão se confundir na areia da praia, esse dia logo chega, e vou te ter de novo ao meu lado, e tu vai saber que tudo veio ao nosso encontro, e que a velha cega não assombra na sombra da janela.
Agora eu sei o nome dela, e grito aos quatro ventos, porque ela não existe mais, nem ele pode me atingir aqui no alto das nossas estrelas.
O nome dela eu nunca vou te dizer, nem preciso, ele já foi, seguiu seu caminho para longe de mim, e isso não importa mais.
Agora eu vou sair para a noite que não é mais escura, porque tu me ajudou a botar elas de volta e nós vamos conta-las juntos, mais uma vez.


ps: Este é um dos meus textos antigos q faltava postar!

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