Tuesday, September 14, 2004

Lá longe nesse lugar

Dias de chuva e cinza. Caras mofadas na rua.
Eu deveria ficar assim: mofado e cinza. Mas não. Não fico.
O responsável é ele: esse João de Barro que mora atrás da minha escola.
Ali eu trabalho, suo, grito, choro, planejo aula, dou aula, me surpreendo, supreendo e adivinho futuros distantes.
Isso acontece desde 1999. E, desde então, sempre que ELA está chegando ele começa seu rito de passagem.
Canta, canta, canta horas a fio. Sempre a mesma música. Sempre igual.
Ele é meu guia nesses dias cinzentos enquanto te espero, enquanto a chuva cai nas tuas costas largas que afago enquanto dormes. Não é assim q Zélia Duncan canta? Não importa.
O que importa é que sentado eu estou aqui enquanto a chuva ruge suas gotas lá fora.
Eu queria poder te mostrar ele. Cantando sobre o galho desnudo de folhas que avança sobre o telhado em frente à janela da sala seis.
A sala seis é a minha sala favorita. Porque é de onde eu vejo ele.
Ainda ontem eu estava com as minhas moléculas de gente que aprende Inglês, sentado numa cadeira de frente para a janela. Ao meu redor as minhas mini ladies entabulam seus diálogos, ensaiam conversas como se fossem peças de Shakespeare:
- Hello!
- Hi!
- Would you like to go to the movies with me?
- I am sorry I can't. I have to wash my hair!
Me divirto e encanto com essas pequenas atrizes em floração, tão cuidadosas em pronunciar as palavras direito.
Elas querem que o teacher delas, o homem barbudo de mechas vermelhas goste! Ao menos duas vezes na semana eu sou o homem forte na vida de alguém!
Da cadeira eu enxergo além do telhado a garagem, e lá dentro, através do vão da porta da garagem eu enxergo outro telhado, cheio de folhas e gravetos. Um ninho. Lá esta ele, estufando o peito e cantando aquela melodia de novo.
Eu perco os minutos na contemplação desse canto. Posso me esquecer delas à minha volta, não porque eu seja um professor relapso, mas porque elas não admitem que eu sequer olhe para elas enquanto elas não acham que a obra-diálogo está terminada.
Então eu me perco nos minutos, e penso:
Penso que queria pegar tua mão e te levar lá em cima e te mostar o canto. Que queria que tu pudesses tomar café comigo ouvindo a primavera estufando seu peito de penas!
Queria te mostrar as minhas mini ladies dando seu show semanal de dramaturgia!
Penso que queria que tu soubesses que sim, sou feliz sim. Gosto dos dias que estão chegando e que quero amor neles, mais amor, porque eu sou amado profundamente e amo profundamente.
Queria que todos vocês meus amores de gente que me lê e se assusta e se encanta pudessem ouvi-lo fazendo sua chamada de primavera!
E ele também canta quando chove!

1 Comments:

Blogger L. said...

Lindo, meu querido! Adorei a obra-diálogo das tuas pupilas!
Beijo grande, ótimo dia pra ti!

5:01 AM  

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