Friday, October 08, 2004

Alice e o gato

Ela ainda se lembra. Nítido, silencioso, acre e escuro contra o muro alvo ao lado da casa.
- Vem, vamos logo...
Palavras ditas com urgência, a mesma urgência de mãos ágeis e quentes desvendando as coxas, alisando a pele macia e medrosa. E no canto, no ângulo onde o muro encontra a parede da casa ao lado, a vizinha tão só, intrometida e impertinente.
- Alice! Tão bonita e tão triste.
Triste, que sabe ela, essa mulher seca e miúda, como um pergaminho velho. Pergaminhos, diz a professora, revelam segredos escondidos. A luz revela o gato no canto, olhando para ela, a menina triste, a rapa de tacho, o susto de uma gravidez tardia e, secretamente, não desejada.
O gato olha de volta e sim, adivinha o instante em que todas as possibilidades se resumem a um sim ou não.
- Não, não vou – diz Alice, encerrando mais uma porta em sua longa sucessão de portas fechadas e fotos amareladas onde pessoas já mortas a carregam no colo.
E ele se foi, ela ouve os passos na calçada, o som se perde na noite escura do seu medo. Alice não é mais uma menina, é uma mulher. A vergonha dói uma vez só, diz a tia que mora ao lado da igreja.
Alice pensa, enquanto corta o tecido da camisa que vai dar de presente ao sobrinho que a visita na casa antiga no final do verão, quando o calor é insuportável.
Ela é uma mulher de sobrinhos, os filhos dos outros não são seus filhos. Suas irmãs a olham com pena. Pobre da Alice, tão só, devia arranjar alguém para tomar conta dela.
Como se toma conta de alguém que nunca quis ninguém além do gato preto, muitos, muitos gatos pretos.
- Coisa de bruxa, diz a avó. Essa menina é estranha.
O gato é testemunha macia e arisca de sua solidão, de suas noites áridas de solteirona. Ele ouve os gemidos abafados pela porta, os ais de seu gozo insuspeito.
Houve um dia, mais um homem, nem tão viril como o que chamou Alice para a vida, nem tão alegre, quase uma sombra. Homem sem pecado. Homem perfeito para emoldurar seus olhos profundos e pensativos.
Ela pensa e o gato olha, ele sabe, ele caminha em sua direção e enrosca-se em suas pernas, sua dona, ou o contrário?
Parceiros ou competidores? Quem entregará os pontos primeiro?
Uma corrida contra um tempo que já foi, não voltará nunca mais, não importa quantas revistas antigas ela leia na sala escura.
A chuva chega finalmente, batendo na vidraça com a suavidade de um amante jogando pedrinhas na varanda onde a donzela febril vem ser mais uma Julieta à procura de seu Romeu.
A irmã fez Julieta numa peça da escola. Seu vestido era tão lindo, tão cheio de fitas e colorido.
O gato passeia no canteiro, por entre as flores, de vez em quando volta a cabeça e mira de volta, ele sabe que ela o espreita.
Chega a ter ódio às vezes, nojo, gatos fedem, são nojentos, pensa ela em um de seus instantes em que parece sentir a chama de uma personalidade aflorando por entre os poros que ela limpa com o mais fino creme de beleza, diz o farmacêutico.
Gatos adivinham pensamentos. O que ela pensa faz sentido agora?
Sente a maciez do tecido contra os dedos. Longos dedos, finos e macios, dedos de quem nunca trabalhou.
Os dois já travam um diálogo de silêncio que dura muito tempo. Quanto tempo vivem os gatos?
Ela não sabe mais, são todos tão parecidos.
Os felinos domésticos caçam ratos. São animais úteis e limpos.
Mas esse gato não, não é útil e nem limpo e nem gato e nem Alice é uma mulher.
Ela é um pergaminho, sem segredo algum a ser revelado, ela é um vácuo sem nome, sem vontade, sem razão de ser como é, apenas é...
O felino não caçou os ratos, os ratos roeram a roupa do rei de Roma, Alice com raiva do rato não foi.
Ficou.
Alimentou o algoz quieto das tardes frias e escuras nessa casa onde não vem ninguém, ela nem quer, dá mais trabalho e se é para vir por caridade que não venham.
Disse não, não foi, ficou. Pariu sua indiferença às possibilidades de sua vida, guardou-se para o nada, nada veio pensa ela.
Rainha do seu próprio castelo. Princesa virgem da casa amarela.
Flor seca no álbum de família. Sobrevivente.
Ela vai matar esse gato. Ainda hoje.



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