Tuesday, September 28, 2004

Tarde

- Não, não e não! exclama Rita embriagada com sua própria raiva.
Ela sente-se cheia de vitalidade nesse grão de momento quando todos os sussurros transformam-se em cuspe.
Um quase nó na luz da tarde, um assombro surdo. Rita cuspindo seus ódios amargurados.
- Bobagem essa sua teimosia - ruge sua mãe de longe. Rita não a vê, mas ouve sua voz seca e áspera de fumante.
Rita pensa nisso tudo sentada na cadeira velha, olhando a longa sombra da árvore avançando pelo pátio e marcando o fim da tarde.
Lá fora a tarde ruge e venta um outubro enlouquecedor.
- Esse vento é como uma lixa nos meus pensamentos! - exclama ela, indefesa e pálida diante das suas misérias.
- Paulo se foi, Clara ri diante de tudo, e Ana... Ana me deixou quatro botões de madrepérola.- espanta-se Rita.
- Botões, botões, botões de madrepérola! Tão lindos e tão raros...
- Isso mesmo, apóia a velha, duvido que qualquer moça nos arredores tenha um beleza dessas pregada à roupa.
Rita pensa em Ana, como Ana é bonita em seu riso fácil e meio sem jeito.
Pés nus no riacho, os dedos se tocando numa carícia fria e transparente.
- O que você vai fazer com eles? - pergunta sua mãe.
- Nada - responde Rita, com um ar de quem não entendeu a pergunta, mas a resposta encaixa em todas as perguntas nesses dias de vida sem Ana.
A tarde, dourada, seca e doce perturba Rita. A manhã é mais fácil, passa rápido. É de tarde que os dedos finos apertam a garganta.
Foi de tarde que o homem rude e sem cuidado veio dizer que aquela moça tinha partido sem se despedir.
Homens são tão estranhos, pensa Rita. Caminham, e trabalham e fodem e gozam e são traídos por mulheres fracas e frágeis.
Homens cospem no chão e vendem fumo, mascam fumo e sopram cheiros esquisitos.
- Acorde! - geme a mãe, seca e pálida de dentro do canto sem luz.
- Vá pra casa do caralho! - cospe Rita ágil e moleca.
A mãe se espanta com Rita. À noite, cremes cheirosos deslizam suavizando ao casca infeliz.
Mão mole, olho frio, casca dura, pedaço de molambo sem jeito.
Rita lambe a foto de Ana com os olhos. Ana abre as pernas de novo, para deixar entrar mais vertigens.
Na cozinha, ainda quente da tarde, a mãe come quieta.

Thursday, September 23, 2004

THE ORIGINAL

Mais um ano, mais um dia 23 de Setembro, graças aos deuses.
Amo esse dia porque foi nele que as graças dos anjos e delicia das margaridas trouxeram ao mundo a minha jóia mais cheirosa: ela, THE ORIGINAL.
Muitos se perguntam porque eu a chamo assim. Simples. EU, esse ser egocêntrico e cheio de manhas é somente uma cópia de uma pessoa: ela, que tem o nome da primeira mulher. Sim, o nome da minha mãe é Eva.
Simples, vital assim, como ela.
Muitas vezes eu pergunto a pessoas que me conhecem:
- Tu conheces a minha mãe?
A resposta é invariavelmente a mesma:
- Não!
E eu replico:
- Conhece sim, estás olhando para ela!
O que isso quer dizer é que eu e ela somos fisicamente parecidos, exceto o nariz, como ela gosta de frisar.
Mas o que eu quero dizer é como eu amo essa pequena menina, foi ela que ensinou quase tudo que eu sei. Foi ela que me ensinou a rezar, a ler e gostar de ler quase tudo que tem letras. Uma mãe linda, a mais linda de todas, a mais alegre. Alguém que me ensinou a ser mais do que ter, a dar mais do que eu recebo, a ser generoso.
Tu que me amas, agradeça um pouco a ela. Eu sou um fruto dessa árvore baixinha, dessa Libriana mais charmosa do mundo.
Ela tem uns medos engraçados e adoráveis: de microondas, de que um trovão queime tudo no mundo.
Ela é assombrosamente inteligente, lucida e criativa. Sua risada enche os dias de música. Ela é uma leitora atenta e quieta.
Meu fantasminha pequeno que habita as madrugadas dessa casa. Sim, porque como toda Libriana, ela sofre de insônia!
Minha vida inteira eu esbarrei nas madrugadas nessa moça em sua insônia espantada com o mundo!
Ela é uma conversa, um riso, um abraço contido. Suas histórias enternecem, comovem.
Penso nela quando menina em seu vestido de lacinhos, o único para ser usado aos Domingos, pois ela foi menina de vida dura, uma fortaleza de amor amparando uma mãe que perdeu duas outras filhas.
Tudo ela fez e viu, já teve um jipe, e um dia atropelou uma galinha. Ficou dias triste e amargurada.
Já chupou tantos cajus em sua vida nordestina que teve saturação de vitamina C.
Essa é minha mãe, uma força que nunca seca. A menina que tinha um cachorro chamado Rádio.
Ela é inacreditável e eu a AMO poderosamente, imensamente e para sempre todos os dias e noites.
A fruta nunca cai longe do pé, lembra?




Tuesday, September 14, 2004

Lá longe nesse lugar

Dias de chuva e cinza. Caras mofadas na rua.
Eu deveria ficar assim: mofado e cinza. Mas não. Não fico.
O responsável é ele: esse João de Barro que mora atrás da minha escola.
Ali eu trabalho, suo, grito, choro, planejo aula, dou aula, me surpreendo, supreendo e adivinho futuros distantes.
Isso acontece desde 1999. E, desde então, sempre que ELA está chegando ele começa seu rito de passagem.
Canta, canta, canta horas a fio. Sempre a mesma música. Sempre igual.
Ele é meu guia nesses dias cinzentos enquanto te espero, enquanto a chuva cai nas tuas costas largas que afago enquanto dormes. Não é assim q Zélia Duncan canta? Não importa.
O que importa é que sentado eu estou aqui enquanto a chuva ruge suas gotas lá fora.
Eu queria poder te mostrar ele. Cantando sobre o galho desnudo de folhas que avança sobre o telhado em frente à janela da sala seis.
A sala seis é a minha sala favorita. Porque é de onde eu vejo ele.
Ainda ontem eu estava com as minhas moléculas de gente que aprende Inglês, sentado numa cadeira de frente para a janela. Ao meu redor as minhas mini ladies entabulam seus diálogos, ensaiam conversas como se fossem peças de Shakespeare:
- Hello!
- Hi!
- Would you like to go to the movies with me?
- I am sorry I can't. I have to wash my hair!
Me divirto e encanto com essas pequenas atrizes em floração, tão cuidadosas em pronunciar as palavras direito.
Elas querem que o teacher delas, o homem barbudo de mechas vermelhas goste! Ao menos duas vezes na semana eu sou o homem forte na vida de alguém!
Da cadeira eu enxergo além do telhado a garagem, e lá dentro, através do vão da porta da garagem eu enxergo outro telhado, cheio de folhas e gravetos. Um ninho. Lá esta ele, estufando o peito e cantando aquela melodia de novo.
Eu perco os minutos na contemplação desse canto. Posso me esquecer delas à minha volta, não porque eu seja um professor relapso, mas porque elas não admitem que eu sequer olhe para elas enquanto elas não acham que a obra-diálogo está terminada.
Então eu me perco nos minutos, e penso:
Penso que queria pegar tua mão e te levar lá em cima e te mostar o canto. Que queria que tu pudesses tomar café comigo ouvindo a primavera estufando seu peito de penas!
Queria te mostrar as minhas mini ladies dando seu show semanal de dramaturgia!
Penso que queria que tu soubesses que sim, sou feliz sim. Gosto dos dias que estão chegando e que quero amor neles, mais amor, porque eu sou amado profundamente e amo profundamente.
Queria que todos vocês meus amores de gente que me lê e se assusta e se encanta pudessem ouvi-lo fazendo sua chamada de primavera!
E ele também canta quando chove!

Sunday, September 05, 2004

Calor, canto e iogurte de morango

Bom, que fazia calor aqui no meu peito eu já estava acostumado. Mas essa pressa, essa urgência fazia tempo que eu não sentia.
Ando caminhando mais rápido do que de costume, buscando chegar onde?
E nessa manhã eu caminhava rápido em meio aos passos domingueiros, e somente uma coisa me parou, atrasou, travou e encantou. Ouço um canto perdido no meio dos ruídos com gosto de algodão doce.
Um pássaro cantando... Olho para cima, buscando ver o local dessa fonte súbita de beleza. Ao meu redor as pessoas continuam caminhando lentas e moles.
Lá está ele, peito estufado, cantando indiferente ao fato de ser observado por mim. Canta lindo, simples e único. Fico ali parado por uns sólidos cinco minutos, até que a minha nuca avisa que não fomos feitos para ficar olhando pro céu muito tempo sem que alguma dor sobrevenha.
Constato, surpreso, que ao meu redor estão umas cinco ou seis pessoas faznedo o mesmo que eu, sem saber exatamente o que eu estou olhando.
Uma delas olha para mim, cúmplice, e diz:
- Tão bonitinho!
Outra tenta adivinhar o encanto e diz:
- Lindas essas flores azuis e lilás.
Eu me rio e me maravilho com a capacidade dos seres que nem eu que insistem em achar beleza nas coisas mais simples.
O pássarinho canta aí na tua cidade moço?
Me lembro que Domigo é dia de Oxalá, o bondoso pai que a todos filhos cuida com ternura e chamego.
Lembro que quero achar algum anel bonito e delicado para dar uma alegria à minha mãezinha menina, pois ela anda de birra comigo, pois meus anéis são só de meninos travessos. Cuido de comprar doces para deixar na praça aos cuidados dos seres que tomam conta delicada de mim.
Penso em sentar no balanço da pracinha e embalar alguns dos meus desejos e anseios nesse dia tão lindo.
E os pássaros, esses cantam em todo o canto lembrando que já já é primavera!
E que as esquinas voltam a guardar surpresas.
Por favor, apure seus sentidos, cole o ouvido ao chão! ELA está chegando de novo!
O que tu queres que ela te traga dessa vez? Faz teus pedidos!

SECRETA